Thursday, March 09, 2006

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O MASSACRE NOS ANOS 50 E 60
Anna Maria Ribeiro

Não! Não se trata de sanguinolentos embates. Não de menos é, ou melhor, foi um massacre! Já casada e com filhos, na época, absurdamente não me dei conta de sua extensão. Imaginava tratar-se de um fenômeno que só acorria no meio militar. Eu sempre me havia sentido como um peixe fora d’água no convívio daquelas senhoras com patentes. Porque as tinham, as senhoras de oficiais mais graduadas do que eu. Para meu enorme espanto eu havia, ao casar, sido promovida ao mesmo posto de meu marido, um segundo tenente da Aeronáutica. Eram-me estranhas as conversas e tudo que se dizia ou pensava não fazia sentindo para mim. Vai daí que julguei que militares eram diferentes: pertenciam a um mundo que não era o meu e que nunca havia visto de perto. Hoje ao receber de uma amiga um elenco de frases publicadas em revistas femininas das décadas de 50 e 60, percebo que a diferente era eu. O mundo era aquele mesmo. Eu é que era oriunda de um outro. Minha família inteira era um mundo aparte que havia me educado fora dos parâmetros da época. Estas mesmas frases que hoje fazem rir são as mesmas que eu ouvia com freqüência, a mim dirigidas num tom de alerta ou recriminação. E não tinha a menor graça quando eu as escutava. As palavras não eram as mesmas, mas o sentido era idêntico. Foi muito complicado sobreviver sem me sentir uma desclassificada. Eu só tinha 19 anos e a insegurança batia, claro. Graças a Deus exceções havia e eu consegui me relacionar com umas poucas moças que, como eu, eram marginalizadas pelo que diziam, pelo que faziam e pelo que pensavam. Mas vamos a elas, as frases.

Não se deve irritar o homem com ciúmes e dúvidas. (Jornal das Moças, 1957)
Se desconfiar da infidelidade do marido, a esposa deve redobrar seu carinho e
provas de afeto. (Revista Claudia, 1962)
A desordem em um banheiro desperta no marido a vontade de ir tomar banho fora
de casa. (Jornal das Moças, 1945)
A mulher deve fazer o marido descansar nas horas vagas. Nada de incomodá-lo com
serviços domésticos. (Jornal das Moças, 1959)
A esposa deve vestir-se depois de casada com a mesma elegância de solteira, pois é
preciso lembrar-se de que a caça já foi feita, mas é preciso mantê-la bem presa.
(Jornal das Moças, 1955)
Se o seu marido fuma, não arrume briga pelo simples fato de cair cinzas no tapete.
Tenha cinzeiros espalhados por toda casa. (Jornal das Moças, 1957)
A mulher deve estar ciente que dificilmente um homem pode perdoar uma mulher
por não ter resistido às experiências prenupciais, mostrando que não era perfeita e
única, exatamente como ele a idealizara. (Revista Cláudia, 1962)
Mesmo que um homem consiga divertir-se com sua namorada ou noiva, na verdade
ele não irá gostar de ver que ela cedeu. (Revista Querida, 1954)
O noivado longo é um perigo (Revista Querida, 1953)
É fundamental manter sempre a aparência impecável diante do marido. (Jornal das
Moças, 1957)
O lugar de mulher é no lar. O trabalho fora de casa masculiniza. (Revista Querida,
1955)

Eu poderia ilustrar com exemplos reais a tragédia que ocorreu com muitas das leitoras das revistas em questão, pela adoção do comportamento preconizado. Só agora, passados muitos anos, tenho conhecimento da fonte que as orientava. E percebo que se comportavam by the book. Era enorme o esforço que faziam para fornecer carinho e provas de afeto aos maridos infiéis garantindo a eles uma confortável e tranqüila permanência no estado de infidelidade; mantinham uma aparência impecável na presença deles o que contrastava com a descuidada aparência dos mesmos em casa; permaneciam reclusas “no lar” tendo no marido a única fonte de informação. Vai daí que só sabiam o que a ele convinha. Hoje percebo que eles – os maridos - nem faziam isto de caso pensado: era assim. Para eles era isto o normal. Deixavam que elas pensassem que a garantia de mantê-los como “caça” conquistada viria unicamente da forma com que se apresentassem e seguissem à risca todas as orientações dadas. E era terrível ver como sofriam aquelas moças quando logo e muito cedo percebiam que as coisas não davam certo e que não eram felizes. Assustadas e feridas percebiam que a “caça” insistia em se rebelar e a não agir nos conformes. Mesmo que passassem a vida arrumando banheiros e distribuindo cinzeiros pela casa. Mesmo que recebessem os trêfegos e infiéis maridos com sorrisos ternos e agrados quando regressavam da casa da “outra” e mesmo que fingissem não ter a menor idéia do que estava ocorrendo. Não consigo achar graça nestas frases que me foram enviadas na intenção de exibir um divertido contexto da época. Elas foram responsáveis por muito sofrimento. O que hoje faz rir, fez muita gente chorar. E chorar muito.

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