Sunday, June 05, 2005

HERBERT KLEIN: BOLÍVIA, EXPLOSÃO POPULAR

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Herbert Klein é historiador especializado em Brasil e Bolívia. Entre seus livros estão Slavery and the Economy of São Paulo, African Slavery in Latin America and the Caribbean, The Atlantic Slave Trade e Bolivia: Evolution of a Multi-Ethnic Society. É professor das universidades Columbia e Stanford.

Entrevista para o Sem Fronteiras da Globo News em 15/6/2005:

JP - O que há de realmente novo na Bolívia? O surgimento de uma nova força política?

HK - É uma força política que não é nova, mas finalmente chegou ao primeiro plano. Desde 1952, as comunidades indígenas e a população mestiça têm sido parte do cenário político. Passaram a votar em 1952, quando permitiram que os analfabetos votassem, e todo mundo participou, houve uma reforma agrária, e houve um logo processo de maturação política.
As duas primeiras gerações se concentraram na reforma agrária, na prestação de serviços para as comunidades, e por isso eram grupos relativamente passivos. Entre 52 e 82, tanto governos de direita quanto de esquerda e até os militares basearam seu poder numa aliança com a classe camponesa, até o fim do regime de Hugo Banzer. Esta aliança significava que o governo central dava recursos às comunidades, dava terras, abriu o distrito de Chapati em Cochabamba onde toda a coca é cultivada, tudo isso foi subsidiado, migração, crédito rural, muito dinheiro foi para a educação pública e com isso a Bolívia se desenvolveu bastante.
Estamos agora na terceira geração de camponeses desde a revolução. Agora eles estão infinitamente mais urbanizados, hoje quase todos aqueles que falam aymara e quechua são grupos urbanos, e todos têm boa educação.
A Bolívia está melhor do que o Brasil em termos de taxa de analfabetismo e, embora seja um país muito pobre, está no meio entre os países da América Latina em termos de educação. A população é alfabetizada. Só nos últimos 20 anos o espanhol se tornou a língua dominante, antes era a língua da minoria. Agora é a língua dominante por causa dos índios e mestiços que aprenderam a falar espanhol. Eles são essa nova geração de grupos alfabetizados de camponeses, mestiços, chamados cholos, que estão surgindo com novas exigências políticas.
Toda esta mobilização popular que começou no final dos anos 90, com novos partidos e tudo mais, levou a uma quebra total do antigo sistema político, ao surgimento de novos agrupamentos, um monte deles. Fora o líder cocalero Evo Morales, não há um partido dominante. Há um monte de pequenos partidos.
Em 95, o presidente Sanchez de Losada, Goni, que foi expulso por esses movimentos populares, começou esta nova tendência quando foi criada a participacion popular. A Bolivia tinha 27 municipios antes disso e agora tem mais de 300. Os municípios agora elegem todos os prefeitos, têm assembléias, começou uma democracia participativa. E em 2002 houve uma emenda à constituição que reconheceu grupos civis, agrupaciones civiles de cidadãos e aldeias indígenas, como partidos políticos. Combinando isso tudo houve de repente a introdução maciça de novos grupos como organizações políticas e isso levou ao colapso dos velhos partidos.
De 82, quando começou o regime democrático estável, até a eleição presidencial de 2002, havia três partidos: direita, centro e esquerda. A esquerda era o MIR, o centro era o MNR e a ADN era a direita. E cada um só tinha um terço dos votos. Por isso sempre havia segundo turno. Tinham que ir para o congresso para eleger o presidente. Até Goni, da última vez que foi eleito, teve só 22% dos votos e Evo Morales teve 21%. Mas tudo isso desmoronou. A mobilização foi provocada por Goni, quando houve o primeiro controle de importação de gás butano para as cidades, o que levou à revolta de 2002 e à derrubada do presidente.
Seu vice, Carlos Mesa, tinha uma missão impossível. Não era um político popular, mas tem bom coração, então retirou as tropas, retirou a polícia, e a mobilização fugiu ao controle.
Primeiro, no altiplano todos os grupos indígenas, rurais e urbanos, tornaram-se altamente mobilizados em torno de questões como a guerra da água, em Cochabamba, o gasoduto para o Chile, a nacionalização do gás, e depois a grande luta sobre o fornecimento de água por uma empresa francesa em El Alto. E El Alto tornou-se um foco.

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El Alto em primeiroplano, La Paz ao fundo

El Alto não existia 20 anos atrás, agora é uma cidade de 700 mil habitantes. São todos índios ou cholos. Sendo que cholo é um termo cultural, não biológico. São todos aymaras e quechuas. E ali é o foco de tudo, inclusive das pequenas empresas que existem na Bolívia e também da mobilização.
E a mobilização agora é em torno de questões mais amplas. Não mais educação, saúde, e sim questões nacionais mais amplas. Por isso há todo tipo de partido, há partidos que aparecem e desaparecem em cinco anos, líderes políticos como Felipe Quispe que surgem e somem dois anos depois -- o partido dele cresceu, depois acabou.
Não é nada claro em que isso tudo vai dar. Há uma completa reorganização do cenário político, o surgimento de grupos étnicos com exigências que são em parte raciais, em parte por um sistema de quotas, em parte idéias nacionalistas vagas, seja o confisco do gás ou a nacionalização do gás, ou alguma outra coisa. Isso é só o início de um conjunto maior de questões, e o que realmente significa é que a classe cholo quer o poder. E quer o poder de uma forma tradicional, o que nunca conteceu em nenhum outro país latino-americano. Agora você vê mulheres vestidas de modo tradicional irem para a universidade. Vestidas não com roupas ocidentais mas roupas tradicionais indígenas. Muito bem vestidas, levando um laptop, mas se vestem assim. Isso é visto como uma provocação pelas velhas classes dominantes. Ou seja, há todo tipo de atividade política simbólica e não dá pra saber onde isso vai parar. É novo. Quanto a isso não dúvida.

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JP- O que é que Santa Cruz quer?

HK - Santa Cruz era uma comunidade branca isolada até os anos 50 e houve muita intervenção governamental para criar a agroindústria em grande escala. A fronteira da soja passou de Mato Grosso para a Bolívia. E está na esfera de influência do Brasil. Todos os cruzeños que vão para a universidade procuram universidades brasileiras. A velha elite costumava ir para universidades no Chile, agora a maioria vai para o Brasil. Você encontra em Santa Cruz muita gente que se formou no Brasil.
Em segundo lugar, eles têm o gás e o petróleo. E estão exigindo maior percentagem de participação. É uma exigência que provoca conflito, porque o estado vai querer ter o controle sobre todos os recursos e aí redistribui-los.
Outra coisa que eles exigiram, em 2003 e 2004, em meio a tudo isso que estava acontecendo no altiplano, os cruzeños tiveram um cabildo abierto e exigiram autonomia. A Bolívia é um país centralizado e o que eles querem é um estado federal com uma legislatura em Santa Cruz, um governo em Santa Cruz, eleito pela população local. Agora eles estão sendo chamados de "pessoal do consenso de Washington", mas são na essência uma classe comercial muito ativa numa grande fronteira agrícola que tem muito em comum com o Brasil, e muito ligada à economia brasileira. Eles têm interesses um pouco diferentes dos da população do altiplano. Mas não acho que exista qualquer possibilidade de separação, só autonomia. Eles estão usando toda a atividade no altiplano em proveito próprio.

JP - Pode haver um terreno comum entre o altiplano e os cruzeños?

HK - Não sei. É uma política irracional e não surgiram líderes. Por exemplo, no último mês na Bolívia a pergunta era: será que Evo Morales vai atrair a classe média? Se não atrair a classe média ele terá só 20% dos votos. Ele é o candidato mais provável à presidência. A questão é: será que ele pode expandir sua base? Hugo Chavez ligou pra ele e disse: negocie. Empurrou-o para finalmente negociar. Um conflito interminável sem negociações poderia provocar uma contra-revolução. Isso é o que parecia perto de acontecer com os militares inquietos e a necessidade de que o estado-maior dissesse que não queria intervir.

JP - Alguém estaria querendo chamar os militares?

HK - Não, não creio. Eles tiveram um longo período de conflito com os militares. Nenhum grupo chamaria os militares, até o momento. Os militares poderiam tentar um golpe sozinhos mas não acho que os movimentos populares negociarão com os militares. Os militares concordaram em apoiar o atual governo de Rodriguez e não intervir. Mas sempre é possível...

JP - E é possível que Rodriguez estabilize o país?

HK - Ninguém sabe. Ficou claro que Evo Morales queria Rodriguez, Carlos Mesa quando saiu do governo declarou que queria Rodriguez, ele era o terceiro na linha de sucessão, é uma figura do judiciário, não tem partido político, concordou que seu governo seja transitório, está organizando as eleições. As eleições devem acontecer em outubro, novembro, e há um debate sobre se deve haver uma constituinte, que nem no Brasil em 1988. O congresso se tornaria a constituinte, portanto mais conservadora, ou ela seria eleita independentemente? No caso boliviano será eleita. Portanto será mais radical.

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O líder cocalero Evo Morales pode ser o próximo presidente

JP - Evo Morales é o único que os cholos reconhecem como líder?

HK - Sim, ele teve sucesso em combinar os migrantes para Chapati, os cocaleros, com as exigências do altiplano. Ele combinou as forças de um grande leque de grupos e agora surgiu como o político mais poderoso na Bolívia.

JP - Qual é a ideologia dele?

HK - O partido é o MAS, um partido socialista. É uma volta ao antigo MNR. Nacionalização dos recursos básicos, alguma representação simbólica para todos os grupos étcnicos, hostilidade em relação ao FMI e o Banco Mundial, e claramente hostilidade quanto aos Estados Unidos, em termos da política antidrogas.

JP - Existe algo de real nas acusações de ingerência externa na Bolívia?

HK - Não. É tão óbvio que todos esses acontecimentos vêm de uma longa evolução de muito tempo. Os índios se mobilizaram até antes de 1952, houve rebeliões indígenas constantes até 1952. Eles tendiam a ser um grupo isolado e passivo, agora são mais articulados. Para começar, já há uma classe média entre os índios, que não existia antes. Em El Alto há uma classe média. E alguns desses índios de classe média estão morando em Calacoto, o bairro rico de La Paz. Há uma estratificação mais complexa acontecendo. Já há homens de negócio nessa comunidade indígena, opostos a uma desorganização maciça.
As exigências agora são excessivas. Para onde isso vai levar ninguém sabe e vai depender de quão negociáveis essas exigências serão. E quando Mesa simplesmente retirou as tropas para os quartéis isso quis dizer que novos elementos de todo tipo puderam surgir. Surgiram e a pergunta agora é quão poderosos eles são. E ninguém saberá até as eleições.
Nas últimas eleições municipais apareceu um monte de partidos políticos mas muitos eram liderados por políticos antigos. Agora a velha classe política foi destruída. Os velhos partidos foram destruídos. A pergunta é se vão se integrar a novas coalizões ou se, como nas últimas eleições municipais, haverá grupos regionais. Um prefeito local extremamente capaz pode de repente emergir como um poder regional. Se tiverem, como é provável, eleições para governadores locais, poderá ser possível ver uma estrutura política mais coerente. A questão é que agora está tudo um caos. Não acho que seja guerra civil. Mas é uma situação política caótica.
A elite avançou para se tornar muito mais aberta do que antes, diante dessas reivindicações, mas só até certo ponto. Se a vida da elite for ameaçada, numa situação como a do Chile, pode ser que ela se volte para o exército e diga "agora basta e vamos reprimir os grupos indígenas". Mas é tão complicado.
E lá está La Paz com um milhão de habitantes e El Alto em cima de La Paz, com 750 mil, então não é um pequeno grupo que possa ser controlado.

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